domingo, 1 de março de 2015

UM GRENAL CONTRA O HOLIGANISMO




ZERO HORA 01 de março de 2015 | N° 18088


LEANDRO BEHS


GRE-NAL 404


Amigos reunidos outra vez, pais e filhos juntos no estádio, irmãos lado a lado, casais de mãos dadas, com suas camisetas azuis e vermelhas. O Gre-Nal 404 terá algo de retomada dos tempos românticos. Eles serão uma ilha. Apenas mil colorados e mil gremistas em uma parte da arquibancada, mas que poderão fazer história e mudar os rumos do clássico gaúcho, resgatando o convívio entre diferentes e a civilidade.

– Não faz sentido eu ir com o meu marido até a porta do estádio, dar um beijo e me despedir dele porque não podemos sentar lado a lado e torcer para times diferentes. Ir disfarçada em uma festa como o Gre-Nal é absurdo. Tomara que tudo dê certo e a torcida mista se expanda para todo o estádio – pondera a colorada e professora de inglês Diéssi Marcico de Souza, 31 anos.

Diéssi comprou um dos últimos bilhetes para a área mista. Pela primeira vez, poderá irá ao clássico com o marido, o gremista e advogado Hugo Motta, 31. O casal, que apesar do entusiasmo acredita em empate neste domingo, esteve apenas uma vez em um Gre-Nal. No Beira-Rio. Diéssi, fardada, foi com os pais na superior. Hugo, à paisana, ficou na inferior, em meio aos colorados.

– Foi uma sensação horrível. Ainda perdemos o jogo. Dessa vez, vou ao Beira-Rio com a camisa do Grêmio e para torcer e comemorar os gols do meu time – diz Hugo. – Faremos o Caminho do Gol e levarei apenas a camisa do Grêmio. Não acredito que terei problemas andando entre os colorados. Tenho certeza de que teremos um clima de cordialidade – aposta o gremista.

IRMÃS QUEREM FAZER UM FESTIVAL DE SELFIES

Na casa dos Garcias Nunes, o ineditismo do clássico empolga as irmãs Laura, 23, e Sofia, 12. A primogênita, colorada e advogada, correu para conseguir o “bilhete premiado”, quase um passe para a Fantástica Fábrica de Chocolates, de Willy Wonka. Sorrisão que parece não caber em um só rosto, a tricolor Sofia comemora a primeira vez na mesma arquibancada com Laura. E podendo torcer para o time do coração.

– Estou muito, muito, muito feliz de ir com a Laura ao Gre-Nal. Já fui a Gre-Nal, mas nunca no Beira-Rio, nem com ela. Faremos um festival de selfies – vibra a caçula, aluna da sétima série do Colégio Israelita.

Laura frequenta o Beira-Rio desde 2009, quando se associou ao Inter. É acostumada ao estádio. Porém, nem isto a livrará de fazer um minuto a minuto pelo telefone para a mãe, Maria Izabel.

– Vamos ter que avisar o tempo todo: na chegada ao estádio, intervalo, fim de jogo e na saída. Ela está preocupada, mas eu disse para a mãe que será uma tranquilidade só na arquibancada mista – conta Laura.

Como deve ser entre irmãos, as gurias discordam do resultado e acreditam em um 2 a 1. No caso, o mesmo placar para cada um de seus times.

GENRO FAZ AGRADOE LEVARÁ SEU SOGRO

Será o Gre-Nal também dos genros e dos sogros. De Canoas, o colorado Richard Alvarenga, 42, trará o gremista (e pai da Marcela, mulher do Richard) Evaldo Migliavacca, 64. Veterano em Gre-Nais, o microempresário frequenta o clássico desde os anos 60. Como Migliavacca iria ao jogo de qualquer maneira, “até na geral do Inter”, o genro decidiu fazer um agrado e levá-lo ao Beira-Rio.

– Já fui duas vezes com ele a Gre-Nais no Olímpico. No meio deles, de camisa branca e mudo. Agora, ele vai conhecer o novo Beira-Rio. E, felizmente, poderá vestir a camisa do Grêmio – lembra Richard.

Apesar da confiança em uma partida sem incidentes, o colorado gostaria que o gremista fosse com uma camisa branca, pelo Caminho do Gol, até chegar à arquibancada. Foi contrariado por Evaldo, que promete sair de casa já com o “manto tricolor”.

– Esse jogo será fundamental para que as torcidas voltem a conviver. Vou com a minha camisa do Grêmio, dos anos 90 mesmo. Se eu apanhar, espero que o Richard seja solidário e apanhe junto – diverte-se o sogro. – Mas nada acontecerá – finaliza.

MANOS JUNTOS PARA HOMENAGEAR O PAI

Para os irmãos Brenner Pereira Ferrão, 33, e Fábio Toledo Ferrão, 38, o clássico será uma espécie de homenagem ao pai. Breno Borges Ferrão morreu em 2012, aos 75 anos. Era colorado, como Brenner, e sempre quis ver os guris juntos no estádio. Não conseguiu. Agora, realizará o sonho da família.

– Pensei que o pai gostaria de nos ver no estádio, mesmo sendo um colorado e outro gremista. Pensei nele na hora de comprar o ingresso – recorda o colorado Brenner, nascido em Belo Horizonte.

– Não tinha como dizer não para um convite destes. Mesmo que o meu time esteja em um momento ruim – relata o gremista Fábio.

A gerente da Central de Atendimento ao Sócio do Inter, Angélica Danoski, entusiasta da torcida mista, já se divertiu antes mesmo do clássico. Ao comprar o ingresso, o sócio colorado precisava preencher um termo de compromisso, com regras de comportamento. No verso da folha, era solicitada a matrícula do associado, o grau de parentesco (ou de amizade) com o convidado, além de justificar o que motivou a escolha. E há pérolas, como a explicação de um pai colorado ao levar o filho gremista:

– É meu filho, mas é gremista doente. Vou trazê-lo para dar um remédio. Para ele sair do Beira-Rio bem tratado.

Ou esta, da mulher para o marido:

– É gremista, mas amo ele mesmo assim.

Será um domingo de arquibancada dividida entre azuis e vermelhos, como nos velhos tempos, quando exercíamos a camaradagem. Quando saíamos do clássico tocando e aceitando a flauta. Sem brigas. Quando ninguém pensava em fechar o estádio para apenas uma torcida. O futuro do Gre-Nal passa pelo setor misto.

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RIVAIS, SIM! INIMIGOS, NÃO!



ZERO HORA 01 de março de 2015 | N° 18088


EDITORIAL


A iniciativa de unir torcidas rivais dá visibilidade para o Rio Grande do Sul e candidata-se a servir de exemplo para outras praças esportivas que vêm sofrendo com a violência de torcedores rivais.


O inédito Gre-Nal de torcida mista, programado para este domingo, assinala um avanço de civilidade na rivalidade centenária do futebol gaúcho. Pela primeira vez desde que as duas torcidas começaram a se identificar com seus clubes, pelas cores e pela paixão, haverá um setor no estádio destinado a receber coirmãos – no melhor sentido do termo. Além de politicamente correta, a ideia do ingresso compartilhado é engenhosa, pois estimula o torcedor a comprar dois pelo preço de um, desde que seu acompanhante seja um rival devidamente uniformizado. Merece todos os aplausos, pois permitirá que parentes e amigos acompanhem o clássico juntos, ainda que sejam rivais na preferência clubística.

Inspirada na recente Copa do Mundo e também no jogo beneficente do final do ano passado promovido pelo argentino D’Alessandro, a iniciativa de unir torcidas rivais dá visibilidade para o Rio Grande do Sul e candidatase a servir de exemplo para outras praças esportivas que vêm sofrendo com a violência de torcedores rivais. Se alcançar os resultados esperados, pode até virar referência internacional.

Sempre é bom lembrar, porém, que se trata apenas da semente para a implementação de uma cultura de convivência e tolerância que a sociedade brasileira deve perseguir não apenas no futebol, mas também em outros setores da vida nacional em que visões e ideias antagônicas geram conflitos. A democracia é o convívio da diversidade, que só se torna possível com regras, com vigilância e com Justiça. O Gre-Nal, tanto dentro quanto fora de campo, é uma competição, que precisa igualmente de normas e controles. Apesar da receptividade dos torcedores e da simpatia despertada pela promoção, as autoridades não podem afrouxar a vigilância do Caminho do Gol, do transporte público, das cercanias e do interior do estádio.

A rivalidade é saudável, foi ela que impulsionou os dois principais clubes gaúchos ao crescimento e às conquistas nacionais e mundiais. Sua degeneração para provocações e brigas é que é nociva. Os gremistas e colorados convidados para o jogo da civilidade deste domingo, portanto, têm uma oportunidade maravilhosa de contribuir para aperfeiçoar a história do Gre-Nal, sem renunciar a suas convicções e a suas paixões.

Editorial publicado antecipadamente no site de Zero Hora, na quinta-feira. Os comentários para a edição impressa foram selecionados até as 18h de sexta. A questão: torcida mista no Gre-Nal é um passo de civilidade. Você concorda?

O LEITOR CONCORDA

Acredito que possamos, sim, ter essa atitude civilizada nos estádios, pois tem muita família em que existem gremistas e colorados. Eu mesma sou gremista e a vida inteira fui a Gre- Nais e ficava na torcida do Inter com meu pai e meus irmãos, mas muitas vezes precisava me calar pra não gerar aquele desconforto. Mas, se começarem a “misturar” as duas torcidas, quem sabe um dia viveremos em perfeita harmonia em um domingo de sol com Gre-Nal.

TAILA MENEZES RIO DE JANEIRO (RJ)

Concordo. A rivalidade tem que ser somente dentro de campo. Vitórias e derrotas fazem parte do jogo. Brigar por causa de futebol é insanidade.

EVERTON ROMERO PORTO ALEGRE (RS)

Concordo. Uma brilhante iniciativa. Acho que tem tudo para dar muito certo. Os torcedores precisam ser tratados como pessoas responsáveis. Como os baderneiros são em número mínimo, se eles conseguirem se infiltrar, o pessoal gente boa vai conseguir segurá-los até a PM poder retirá-los do estádio.

EUCLIDES CERUTTI DA SILVA JUNDIAÍ (SP)

Este é um passo importante para o retorno das famílias aos estádios.

CARLOS OLIVEIRA RIO GRANDE (RS)

O LEITOR DISCORDA

Pode até ser, do ponto de vista social, uma boa iniciativa, mas entre esses adversários acredito que não vá dar certo – e não vai dar. Já faz parte do DNA de cada um ver o outro como adversário e até inimigo. Temos vários exemplos de verdadeiras lutas campais entre os mesmos. Será que agora evoluíram ao ponto de ficarem amigos e assistirem seus times jogarem um ao lado do outro? E na hora de um gol, quem festejar pode esperar um revide do “amigo adversário”. Já faz parte desse tipo de contenda. Não concordo em nome da paz, que reina com cada um no seu quadrado, apesar dos pesares!

MILTON UBIRATAN RODRIGUES JARDIM TORRES (RS)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A VIOLÊNCIA E O ESVAZIAMENTO DOS ESTÁDIOS DE FUTEBOL




Melquisedec Nascimento


Uma recente pesquisa do IBOPE/LANCE! revelou que 90% dos brasileiros não costumam frequentar os estádios de futebol. Trata-se de um número estarrecedor, haja vista o Brasil ser considerado o País do futebol. Inúmeros motivos foram elencadas pelos entrevistados para não frequentarem os estádios, entre os quais a violência(34,5%), a distância(27%) e o preço dos ingressos(17%).


A pesquisa também revelou que o costume de ir aos estádios de futebol é mais comum entre os que têm renda familiar acima de 10 salários mínimos, enquanto que os torcedores com renda familiar entre 2 e 5 salários mínimos, são os que menos frequentam os estádios, apesar de todo o trabalho de incentivo ao programa sócio-torcedor, cuja finalidade é conceder descontos em torno de 50% nos preços dos ingressos, aos torcedores que se comprometam a pagar R$ 30, em média, de mensalidade ao seu clube de coração, portanto é patente que os altíssimos preços dos ingressos estão fora da realidade do poder aquisitivo dos brasileiros, cabendo aos envolvidos no processo de gestão esportiva rever a atual política de preços.


Em relação à distância como motivo para afastar o torcedor dos estádios, podemos concluir que não é a distância em si, mas o transporte, na verdade, a locomoção que é o principal problema. Há que se buscar soluções para melhorar o transporte não só o público, no caso, os ônibus, mas também os de massa nos dias de jogos, incentivando assim o torcedor a utilizar o metrô e os trens, estes sim transportes de massa, sendo necessário um verdadeiro choque de gestão da qualidade nesses serviços, a fim de estimular o seu uso nos dias de jogos.


Finalizando, há que se tomar medidas contundentes para prover efetiva segurança aos torcedores nos estádios de futebol, pois a violência é o principal fator de esvaziamento dos estádios, conforme revelou a supracitada pesquisa, cabendo, portanto, às autoridades da área de segurança pública, em conjunto com os gestores do futebol buscarem soluções para trazer de volta a sensação de segurança aos torcedores, aumentando assim a presença do público nos estádios, pois ter apenas 10% da população frequentando os estádios, desautoriza o Brasil ser considerado o país do futebol.







COMENTÁRIO DO BENGOCHEA
- Realmente, a revelação da pesquisa "que 90% dos brasileiros não costumam frequentar os estádios de futebol" indica um retrocesso de um lazer esportivo que detinha o primeiro lugar na preferência dos brasileiros, provocado pela violência(34,5%), distância(27%) e preço dos ingressos(17%). Os preços são exorbitantes e transformaram o futebol em esporte para ricos; a distancia mostrou o quanto o país está atrasado na questão de transporte urbano e coletivo; e a violência só retrata o país que vivemos, um país da impunidade, com leis permissivas, com uma justiça leniente e com autoridades legislativas e judiciárias sem qualquer vontade em tratar as questões de violência para garantir a segurança da população brasileira. 



sábado, 21 de fevereiro de 2015

QUANDO O ÁLCOOL ENTRA, A SEGURANÇA SAI DE CAMPO



ZERO HORA 21 de fevereiro de 2015 | N° 18080


JOSÉ FRANCISCO SEABRA MENDES JÚNIOR*



Inegavelmente, nos campos de futebol, onde afloram as paixões e a predisposição para o confronto, a proibição de consumo de álcool impede que sejam potencializados comportamentos temerários. Agora, quando recrudesce movimento para a liberação da bebida nos estádios, cumpre esclarecer à opinião pública que a maioria das ocorrências conduzidas ao Juizado Criminal, nos dias de futebol, guarda direta relação com o consumo de álcool, sendo que está cientificamente provado que a ingestão de bebida alcoólica acentua a impulsividade e a perda dos freios inibitórios.

Os defensores da liberação aduzem que a atual proibição não resolve o problema, visto que há livre consumo de álcool antes dos jogos, ao redor dos estádios. Porém, ao vetar o consumo durante a partida, o atual regramento pelo menos impede que se acentuem os casos de alcoolemia em meio ao jogo. De qualquer modo, a melhor solução não é a liberação, mas sim, o exemplo que vem de Fortaleza (CE), onde a lei proíbe a venda e consumo de álcool não só no interior do estádio, mas inclusive em seu entorno, num raio de cem metros. Outra solução, que tem sido buscada pela Promotoria do Torcedor, junto à Smic, é a intensificação da fiscalização do entorno dos estádios da Capital, para cobrar com rigor o alvará dos bares, bem como zelar pelo cumprimento da lei que proíbe comércio ambulante de bebidas alcoólicas. A sociedade não pode permitir que interesses econômicos se sobreponham ao direito essencial do torcedor à segurança. E para que possamos ter estádios cada vez mais seguros, o álcool definitivamente não pode entrar em campo.



*PROMOTOR DE JUSTIÇA

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

CERTIFICADO DE PROFESSOR COMPRADO





ZERO HORA 15 de dezembro de 2014 | N° 18014


CARLOS ROLLSING MAURÍCIO TONETTO


O SUBMUNDO DAS LUTAS. CERTIFICADO DE PROFESSOR CUSTA R$ 1.448



SEM NUNCA TER treinado, repórter de ZH negociou e comprou um grau preto, o que possibilita o atleta a se tornar professor de muay thai. Esta é a segunda reportagem da série O Submundo das Lutas, que começou ontem e se encerra amanhã, retratando fragilidades flagradas em campeonatos e em federações de artes marciais.


Não apenas os campeonatos de MMA e muay thai servem como fonte de arrecadação para federações e professores, como mostrou reportagem de ontem de ZH. A venda de graus (faixas) para transformar iniciantes em instrutores, professores ou mestres é prática corriqueira, que faz circular dinheiro.

Amparados pelas facilidades da Lei Pelé, donos de academias e de associações se juntam e fundam federações para si. Apenas no Rio Grande do Sul, existem pelo menos seis entidades de muay thai e duas de MMA.

– O inchaço ocorre pela falta de legislação específica. Pessoas não qualificadas estão abrindo federações, achando que, com isso, podem sair dando certificados ao deus-dará. São entidades que se preocupam simplesmente com a arrecadação de valores – afirma Enildo Pacheco, presidente da Federação Gaúcha de Muay Thai Tradicional.

Para o lutador Thiago “Minu” Meller, atleta do Bellator, segundo maior evento de MMA do mundo, a situação das artes marciais é “preocupante”.

– Hoje em dia, é muito fácil ter uma federação – avalia Minu.

Em quatro das seis federações de muay thai oficializadas no Estado, a reportagem de ZH negociou a compra de diferentes graus que autorizam pessoas a dar aulas, formar equipes e promover graduações.

Numa delas, a reportagem levou a transação até o final e obteve, depois de seis dias de conversas por e-mail e telefone, o certificado de grau preto, acessível somente aos professores com anos de experiência. O documento, que custou dois salários mínimos (R$ 1.448), foi assinado pelo presidente da Federação de Muay Thai do Rio Grande do Sul (FMTRS), Éderson Galvão, para “Carlos Braga”, nome usado por ZH na negociação.

O prajied – como se chama a faixa no muay thai – foi adquirido sem qualquer exame de conhecimento da luta e da filosofia oriental. Não foi preciso nem sequer um encontro pessoal entre o comprador e Galvão. Nas conversas, o repórter ponderou que já dava aulas da modalidade e treinava havia anos, mas não tinha nada que comprovasse o trabalho.

– Exame para a preta é dois salários mínimos. O que eu poderia fazer pra ti: eu não vou te examinar, tu já dá aula, já tá há tempo aí trabalhando. Tu pagaria essa equiparação de dois salários mínimos, e a gente mandaria a certificação – disse Galvão.

Em 3 de dezembro, foi feito o depósito na conta bancária indicada por Galvão. Minutos depois, um “alvará” da FMTRS chegou por e-mail, autorizando “Carlos Braga a ministrar aulas de muay thai como grau preto – treinador na cidade de Caçapava do Sul”, município em que o repórter disse que residia e trabalhava. A opção pela cidade foi aleatória.

Assim, o jornalista, que desconhecia qualquer técnica da luta, tornou-se apto a formar turmas, contando inclusive com apoio jurídico da FMTRS.

– Por exemplo: um aluno teu se machucou e vai te processar ou alguém quer pensão. Temos um advogado à disposição – afirmou Galvão.

Logo depois, ele introduziu na conversa o tema dos eventos. Quando alguém adquire a condição de professor, fica vinculado à entidade e passa a integrar um circuito de atividades que geram renda. Para se manter vinculado, existe a obrigatoriedade de participar de cursos de arbitragem, competições e graduações.

– A gente tem o estadual, brasileiro, mundial, sul-americano. Olha, tu vai ter algumas coisas para oferecer aos teus alunos. Todo mês fazemos alguma coisa. Tu vai dizer: ‘bah, mas são dois salários mínimos (o grau preto)’. Mas é um investimento. Se tu tem cem alunos hoje, eles vão ver que tem isso e aquilo para fazer, e vai vir mais gente – ensinou Galvão.

Na última terça-feira, a reportagem foi até Cidreira, na academia de Galvão, para buscar o prajied grau preto, o alvará, o certificado, o calendário de eventos da federação e uma apostila. Além de incentivar o mais novo professor de muay thai a realizar competições com o apoio da entidade, o presidente da FMTRS orientou a fazer graduações de alunos trimestralmente. Essas promoções de faixa podem gerar arrecadações de até R$ 180 por lutador.

– Até azul claro (sexto prajied na federação de Galvão), tu pode fazer a cada três meses. Tu tem um percentual de 50% de cada aluno – disse, indicando que o “repórter-professor” ficaria com a metade do valor pago por atleta para se graduar.

Outra negociação foi feita com o mestre Giovani Máximo, diretor-técnico da Federação Riograndense de Muay Thai (FRMT). Depois de dizer que não tinha nenhum documento para provar que havia treinado nos e de explicar que precisava do grau preto para continuar dando aula em uma academia de Caçapava, o repórter ouviu uma proposta alternativa.

Sem a necessidade de qualquer exame ou demonstração de conhecimento, receberia o prajied azul escuro, que lhe autorizaria a dar aulas como “instrutor”.

– Se não tem documento, a gente equipara o cara na graduação azul escuro. A gente dá seis meses para se adaptar ao sistema da federação e concede um alvará – disse Máximo.

Ele garantiu que o prajied oferecido pela FRMT dá o direito de manter turmas de muay thai.

– Tu pode dar aula, com certeza. Nesse caso aí, tu vai ser instrutor – assegurou.

Para se graduar prajied azul escuro, o repórter teria de pagar R$ 200 à federação de Máximo. Também seria necessário assinar um “termo de compromisso” em que uma das cláusulas determina: “Participar ativamente de torneios”.




CONTRAPONTOS
O QUE DISSE EDERSON GALVÃO
Não é uma venda de grau. Ele me disse uma coisa, me relatou uma coisa, e eu simplesmente acreditei na palavra dele. Como ele já dá aula numa academia, não tem como dizer assim “não, vou ver se tu é professor”.
O QUE DISSE VINICIUS SALVATO
Isso aí é uma prática que existe (a venda de grau). Com relação à minha pessoa, é uma mentira. A gente não pode formar ninguém faixa preta de uma hora para outra. É tirada uma folha corrida na polícia, no Fórum. Acontece de eu ter graduado alguns alunos que eram faixas pretas de outras modalidades. Mas para graduar grau preto, é preciso fazer um curso dado por um pedagogo, um profissional na área de saúde. Todos os meus faixas pretas fizeram isso. Tem que fazer um curso de formação de instrutor para ensinar artes marciais. No meu sistema, a pessoa tem de fazer um curso de formação de instrutor. Essa é uma prática que eu abomino e inclusive investigo, porque faço parte do Sindicato dos Professores de Artes Marciais do RS.
O QUE DISSE GIOVANI MÁXIMO
Eu não dou graduação para ninguém. Se tiver isso aí, pode publicar tudo. Eu me conheço, conheço meu trabalho e meus alunos para se graduar levam um bom tempo. Eu tenho atleta que treina há sete anos e meio e agora fez exame para grau azul com preto. Da minha parte, se houver isso, gostaria até que publicasse. Se tiver algo na mão, que mostre realmente isso. Da minha parte, tenho certeza que não houve. Estou com a consciência tranquila. Para mim, isso é total mentira. Inclusive, gostaria que me mostrasse uma gravação, alguma coisa. Eu jamais vendi graduação para alguém ou negociei.
O QUE DISSE ALEXANDRE CARNEIRO
A minha federação não tem nenhum certificado de grau vermelho com branco. O grau máximo é marrom com branco. Aqui, não acontece negociação de grau. Eu fui três anos seguidos para a Tailândia, lutei mundial, sou nomeado professor lá em técnicas, não botaria meu nome fora. Dou aula por esporte. Sou gerente de estacionamento, segurança de uma família há 14 anos. Arte marcial, para mim, é puro hobby.

sábado, 13 de dezembro de 2014

SUBMUNDO DAS LUTAS

ZERO HORA 13/12/2014 | 13h01

ZH investiga. Submundo das Lutas: em 78 segundos, inscrição de repórter é aceita em campeonato
Série de reportagens investigativas, que começa neste fim de semana, mostra o descontrole no MMA e muay thai em Porto Alegre e Região Metropolitana

por Carlos Rollsing e Mauricio Tonetto


Longe dos octógonos de luxo e dos combates profissionais, a falta de regras e fiscalização nos campeonatos amadores de muay thai e MMA (Mixed Martial Arts) dá sentido ao termo “vale tudo”. Por mais de três meses, ZH mergulhou nos subterrâneos das lutas e foi aceita em campeonatos sem comprovar qualificação. Nos torneios, viu atletas despreparados em lutas de desnível técnico, com equipamentos precários e inclusive ambulâncias proibidas. Nos bastidores, comprovou que a explosão de popularidade das artes marciais e a multiplicação de academias formou um ambiente perigoso para fãs do esporte.


Antiga denominação dos embates entre lutadores, “vale tudo” é uma expressão que pode ser aplicada para explicar o cenário underground dessas modalidades, impulsionadas pela explosão de popularidade das artes marciais e pela multiplicação de academias – parte delas sem respeitar os princípios milenares dessas lutas.



Por mais de três meses, ZH mergulhou nos subterrâneos do muay thai e do MMA da Região Metropolitana. A reportagem observou, documentou e participou de campeonatos, demonstrando que, em alguns dos chamados "torneios estímulos", basta pagar a taxa de inscrição para garantir minutos sobre o ringue ou o octógono.



Não é necessário comprovar experiência, ter autorização de professor ou ser aluno de algum centro de treinamento. Nos torneios assistidos pela reportagem, houve casos de atletas se enfrentando sem equipamentos de proteção em combates com desníveis técnicos grosseiros, e de ambulâncias proibidas, pelos organizadores, de encaminhar feridos ao hospital.



Sem nenhum treino, repórter vira "lutador"


Um minuto e 18 segundos foi o tempo necessário para se inscrever em um torneio amador de MMA. Sem nenhuma experiência no esporte, o repórter entrou em uma academia, aproximou-se do balcão e afirmou que queria lutar no "torneio estímulo", marcado para o último dia 22 de novembro. A uma atendente, respondeu a perguntas básicas, como nome, peso, altura e telefone. Ao final, o pagamento da taxa de inscrição: R$ 50 (veja imagem abaixo).






O repórter garantiu vaga para subir ao octógono mesmo sendo sedentário, não tendo treinamento algum, nem conhecimento das artes marciais ligadas ao MMA. Não foi feita nenhuma pergunta sobre professor responsável, nível técnico, academia ou origem. No dia seguinte ao da inscrição, um homem ligou se identificando como integrante da academia promotora do evento.


Questionou se um técnico acompanharia o repórter, que sem o conhecimento do interlocutor, passava-se por lutador. A resposta foi negativa. O nome do “atleta” foi incluído no card do evento, realizado na sede da academia, na zona norte de Porto Alegre, de forma avulsa. O lutador “Carlos Braga”, identificação utilizada na inscrição, não representava nenhuma academia e lutaria sem técnico.





– Os professores têm organizado competições para arrecadar fundos para si próprios, é um caça-níquel. Para uma pessoa lutar, teria de ter um técnico para orientar, uma equipe por trás. E se o atleta sofre uma lesão? Já temos aí casos conhecidos. Se uma pessoa enfrenta outra de nível técnico superior, pode até haver óbito. Quem é o responsável por isso? – diz Enildo Pacheco, líder da Federação Gaúcha de Muay Thai Tradicional.


Dias antes da competição, foi divulgada a lista das lutas, com maioria de combates no muay thai. Entre os seis embates de MMA, Carlos Braga foi escalado para disputar o “co-main event”, o que significa a segunda luta mais importante. O “torneio estímulo”, com lutas de muay thai e MMA, foi organizado por Márcio Miranda, proprietário da academia Elite Thai, em parceria com a Team Nogueira, controlada na capital gaúcha pelo empresário Rafael Chiavaro e franqueada pelos irmãos Rodrigo e Rogério Nogueira, também conhecidos como Minotauro e Minotouro, famosos no mundo do UFC.


No dia do evento, Carlos Braga se apresentou para a pesagem. Dois quilos acima do peso na primeira checagem, vestiu três peças de roupa sobrepostas e foi correr por 45 minutos pela Avenida Sertório, onde fica a academia. Cansado, colocou-se, por mais 10 minutos, a pular, por vontade própria, entre duas máquinas de assar frango que estavam em uma calçada, em frente a um restaurante, para queimar líquido com o calor.


Na segunda verificação, o “repórter-lutador” havia perdido três quilos, ficando um abaixo do peso máximo da categoria. Ele estava confirmado para a luta que deveria ocorrer à tarde. O atleta se manteve nas dependências da academia por horas. Instantes antes da seu combate, deixou o local, sem avisar, para não correr riscos.



Crédito: Ricardo Duarte/Agência RBS


Por R$ 50, pode-se lutar no octógono



O locutor anunciou o combate e chamou o seu adversário, Lindomar Silva, que subiu ao palco do enfrentamento. Embora tenha informado no ato da inscrição que tinha apenas três meses de treino, Carlos Braga lutaria com Lindomar, que ainda não estreou no octógono, mas já tem registro no Sherdog, um cadastro online internacional de atletas profissionais e semiprofissionais de MMA.


– O risco é de lesões irreversíveis, de as pessoas ficarem hospitalizadas para o resto da vida. Essas lutas entre pessoas mais e menos preparadas vão continuar acontecendo enquanto não tivermos profissionais que casem as lutas, o matchmaker, para promover enfrentamentos de atletas do mesmo nível – diz Gustavo Finck, presidente da Federação Gaúcha de Artes Marciais Mistas.



Lindomar Silva venceu por desistência (Mateus Bruxel/Agência RBS


– O aluno praticante de arte marcial é um lutador por natureza. Ele não tem medo. Se chamam um cara de 120 quilos e ele tem 80 quilos, ele vai querer lutar. O professor é quem tem de dar a proteção. Eu acredito que deixar um atleta amador lutar com alguém mais experiente é responsabilidade do professor. E lutar sem equipamento de proteção é responsabilidade da federação (organizadora do evento) – aponta Thiago “Minu” Meller, atleta do Bellator, segundo maior evento de MMA do mundo.


Episódio semelhante ocorreu em outro torneio estímulo no dia 4 de outubro, nas dependências do Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete). A competição, mais uma vez, foi organizada por Márcio Miranda. A reportagem de ZH inscreveu dois atletas inexistentes no torneio. Os nomes das academias também eram falsos (veja imagem abaixo).



Luis Sergio e Max Massa eram os atletas falsos divulgados no card


Bastou fazer depósito bancário de R$ 50 por lutador na conta de Miranda e mandar os dados dos atletas por e-mail. O direito de entrar no ringue para disputar lutas de MMA amador estava garantido, sem nenhuma restrição ou pergunta sobre as condições físicas, responsáveis técnicos, treinamento e experiência. Pagou, lutou.


Falta de regras incentiva desvios


Com a falta de regras claras e a inexistência de leis que regulamentem no Brasil a prática das artes marciais, a formação também está em risco. Criadas em profusão, algumas federações fornecem, sem muito esforço dos pretendentes, certificados que permitem a qualquer pessoa, mesmo quem nunca tenha treinado, tornar-se professor.


Nesta realidade sem regras, “mestres” inescrupulosos mancham o nome de práticas esportivas milenares, deixando de lado as antigas filosofias de disciplina e respeito seguidas pela maioria dos praticantes e academias para dar margem a um mundo focado em lutas, promoções de faixa e eventos que possam significar dividendos.


Saiba quais são os equipamentos de proteção usados no muay thai amador:​
A conta é paga com a saúde de praticantes ludibriados pelo sonho de conquistar a fama por meio de combate ou pelo desejo de sentir-se forte ao nocautear um oponente. Símbolo disso é a jovem Maria Luiza Ramos, há três anos em estado vegetativo depois de lutar, em um campeonato de muay thai em Porto Alegre, sem equipamentos de proteção.


Enfrentando uma atleta mais experiente, levou diversos golpes na cabeça, sofreu um derrame e, após a luta, a equipe de socorro da ambulância foi orientada a não levá-la ao hospital. O vale tudo deixou Maria Luiza em cima de uma cama de forma irreversível. E continua espalhando sequelas impunemente.


Maria Luiza Ramos vive em estado vegetativo (Mateus Bruxel/Agência RBS)

O que dizem os envolvidos citados na reportagem

Rafael Chiavaro, proprietário da Team Nogueira Porto Alegre
Foi o primeiro circuito que eu fiz. Estou aprendendo bastante ainda. A atendente fez pela orientação: inscreve o atleta e depois ele faz o checklist. Ele garantiu a vaga dele, só que não passou no checklist. A orientação dada foi: inscreve o cara e depois faz o checklist. No meu ver, não tem nada de irregular. Ele não ia pisar no ringue sem um corner e um mestre. Pode ter certeza que esse atleta (no caso, o repórter) não ia lutar se não passasse pelo checklist. Vocês estão tentando procurar cabelo em ovo. Eu não gastei R$ 1 milhão para machucar atleta, e sim para promover o esporte. A exigência é muito grande para um ramo que não dá lucro nenhum.

Márcio Miranda, organizador dos campeonatos citados por ZH
Como é um evento amador, a gente faz um bastantão e seleciona tudo e na hora faz uma triagem e um checklist antes de subir no octógono. Experiência de treino não quer dizer nada. Ele (o repórter de ZH) não ia lutar, se estivesse sozinho não ia lutar. 


terça-feira, 26 de agosto de 2014

LUTAS CLANDESTINAS GERAM ALARME


ZERO HORA 26 de agosto de 2014 | N° 17903


LUTA VIRA CASO DE POLÍCIA




Competições clandestinas e academias de luta que operam à margem de federações preocupam autoridades e esportistas. Segundo o presidente da Federação Gaúcha de Muay Thai Tradicional, Enildo Pacheco, a situação é grave. Ele atribui o problema à falta de uma legislação que conceda poderes de fiscalização às entidades federativas.

Pacheco afirma que há muitos circuitos de luta realizados sem respaldo de alguma entidade. A principal preocupação dele é com a quantidade de crianças e adolescentes que ingressam no esporte, sem consciência dos riscos.

– Isso virou um negócio lucrativo. Está cheio de academia que não é filiada a ninguém. Chega um professor, coloca um calção e vai dar aula. Temos de ensinar arte marcial, e eles estão apenas ensinando luta – critica.

No caso de Luiza, ele diz que houve um acúmulo de irregularidades, que acabaram por culminar no desfecho trágico:

– Eles colocaram a menina para lutar com pouco tempo de treino, sem proteção e contra alguém de nível muito mais elevado. Todo atleta quer combater. Cabe ao instrutor saber se ele pode.

A federação presidida por Pacheco é a única a ter feito um acordo com o MP para informar sobre as competições que promove. Conforme o promotor Júlio Almeida, responsável por fiscalizar a prática de esportes violentos, poucas são as denúncias que chegam até ele:

– Sabemos que existem muitas academias de fundo de quintal, mas parece que as pessoas que praticam esses esportes e participam dos campeonatos são coniventes, esquecendo dos riscos.