segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

CERTIFICADO DE PROFESSOR COMPRADO





ZERO HORA 15 de dezembro de 2014 | N° 18014


CARLOS ROLLSING MAURÍCIO TONETTO


O SUBMUNDO DAS LUTAS. CERTIFICADO DE PROFESSOR CUSTA R$ 1.448



SEM NUNCA TER treinado, repórter de ZH negociou e comprou um grau preto, o que possibilita o atleta a se tornar professor de muay thai. Esta é a segunda reportagem da série O Submundo das Lutas, que começou ontem e se encerra amanhã, retratando fragilidades flagradas em campeonatos e em federações de artes marciais.


Não apenas os campeonatos de MMA e muay thai servem como fonte de arrecadação para federações e professores, como mostrou reportagem de ontem de ZH. A venda de graus (faixas) para transformar iniciantes em instrutores, professores ou mestres é prática corriqueira, que faz circular dinheiro.

Amparados pelas facilidades da Lei Pelé, donos de academias e de associações se juntam e fundam federações para si. Apenas no Rio Grande do Sul, existem pelo menos seis entidades de muay thai e duas de MMA.

– O inchaço ocorre pela falta de legislação específica. Pessoas não qualificadas estão abrindo federações, achando que, com isso, podem sair dando certificados ao deus-dará. São entidades que se preocupam simplesmente com a arrecadação de valores – afirma Enildo Pacheco, presidente da Federação Gaúcha de Muay Thai Tradicional.

Para o lutador Thiago “Minu” Meller, atleta do Bellator, segundo maior evento de MMA do mundo, a situação das artes marciais é “preocupante”.

– Hoje em dia, é muito fácil ter uma federação – avalia Minu.

Em quatro das seis federações de muay thai oficializadas no Estado, a reportagem de ZH negociou a compra de diferentes graus que autorizam pessoas a dar aulas, formar equipes e promover graduações.

Numa delas, a reportagem levou a transação até o final e obteve, depois de seis dias de conversas por e-mail e telefone, o certificado de grau preto, acessível somente aos professores com anos de experiência. O documento, que custou dois salários mínimos (R$ 1.448), foi assinado pelo presidente da Federação de Muay Thai do Rio Grande do Sul (FMTRS), Éderson Galvão, para “Carlos Braga”, nome usado por ZH na negociação.

O prajied – como se chama a faixa no muay thai – foi adquirido sem qualquer exame de conhecimento da luta e da filosofia oriental. Não foi preciso nem sequer um encontro pessoal entre o comprador e Galvão. Nas conversas, o repórter ponderou que já dava aulas da modalidade e treinava havia anos, mas não tinha nada que comprovasse o trabalho.

– Exame para a preta é dois salários mínimos. O que eu poderia fazer pra ti: eu não vou te examinar, tu já dá aula, já tá há tempo aí trabalhando. Tu pagaria essa equiparação de dois salários mínimos, e a gente mandaria a certificação – disse Galvão.

Em 3 de dezembro, foi feito o depósito na conta bancária indicada por Galvão. Minutos depois, um “alvará” da FMTRS chegou por e-mail, autorizando “Carlos Braga a ministrar aulas de muay thai como grau preto – treinador na cidade de Caçapava do Sul”, município em que o repórter disse que residia e trabalhava. A opção pela cidade foi aleatória.

Assim, o jornalista, que desconhecia qualquer técnica da luta, tornou-se apto a formar turmas, contando inclusive com apoio jurídico da FMTRS.

– Por exemplo: um aluno teu se machucou e vai te processar ou alguém quer pensão. Temos um advogado à disposição – afirmou Galvão.

Logo depois, ele introduziu na conversa o tema dos eventos. Quando alguém adquire a condição de professor, fica vinculado à entidade e passa a integrar um circuito de atividades que geram renda. Para se manter vinculado, existe a obrigatoriedade de participar de cursos de arbitragem, competições e graduações.

– A gente tem o estadual, brasileiro, mundial, sul-americano. Olha, tu vai ter algumas coisas para oferecer aos teus alunos. Todo mês fazemos alguma coisa. Tu vai dizer: ‘bah, mas são dois salários mínimos (o grau preto)’. Mas é um investimento. Se tu tem cem alunos hoje, eles vão ver que tem isso e aquilo para fazer, e vai vir mais gente – ensinou Galvão.

Na última terça-feira, a reportagem foi até Cidreira, na academia de Galvão, para buscar o prajied grau preto, o alvará, o certificado, o calendário de eventos da federação e uma apostila. Além de incentivar o mais novo professor de muay thai a realizar competições com o apoio da entidade, o presidente da FMTRS orientou a fazer graduações de alunos trimestralmente. Essas promoções de faixa podem gerar arrecadações de até R$ 180 por lutador.

– Até azul claro (sexto prajied na federação de Galvão), tu pode fazer a cada três meses. Tu tem um percentual de 50% de cada aluno – disse, indicando que o “repórter-professor” ficaria com a metade do valor pago por atleta para se graduar.

Outra negociação foi feita com o mestre Giovani Máximo, diretor-técnico da Federação Riograndense de Muay Thai (FRMT). Depois de dizer que não tinha nenhum documento para provar que havia treinado nos e de explicar que precisava do grau preto para continuar dando aula em uma academia de Caçapava, o repórter ouviu uma proposta alternativa.

Sem a necessidade de qualquer exame ou demonstração de conhecimento, receberia o prajied azul escuro, que lhe autorizaria a dar aulas como “instrutor”.

– Se não tem documento, a gente equipara o cara na graduação azul escuro. A gente dá seis meses para se adaptar ao sistema da federação e concede um alvará – disse Máximo.

Ele garantiu que o prajied oferecido pela FRMT dá o direito de manter turmas de muay thai.

– Tu pode dar aula, com certeza. Nesse caso aí, tu vai ser instrutor – assegurou.

Para se graduar prajied azul escuro, o repórter teria de pagar R$ 200 à federação de Máximo. Também seria necessário assinar um “termo de compromisso” em que uma das cláusulas determina: “Participar ativamente de torneios”.




CONTRAPONTOS
O QUE DISSE EDERSON GALVÃO
Não é uma venda de grau. Ele me disse uma coisa, me relatou uma coisa, e eu simplesmente acreditei na palavra dele. Como ele já dá aula numa academia, não tem como dizer assim “não, vou ver se tu é professor”.
O QUE DISSE VINICIUS SALVATO
Isso aí é uma prática que existe (a venda de grau). Com relação à minha pessoa, é uma mentira. A gente não pode formar ninguém faixa preta de uma hora para outra. É tirada uma folha corrida na polícia, no Fórum. Acontece de eu ter graduado alguns alunos que eram faixas pretas de outras modalidades. Mas para graduar grau preto, é preciso fazer um curso dado por um pedagogo, um profissional na área de saúde. Todos os meus faixas pretas fizeram isso. Tem que fazer um curso de formação de instrutor para ensinar artes marciais. No meu sistema, a pessoa tem de fazer um curso de formação de instrutor. Essa é uma prática que eu abomino e inclusive investigo, porque faço parte do Sindicato dos Professores de Artes Marciais do RS.
O QUE DISSE GIOVANI MÁXIMO
Eu não dou graduação para ninguém. Se tiver isso aí, pode publicar tudo. Eu me conheço, conheço meu trabalho e meus alunos para se graduar levam um bom tempo. Eu tenho atleta que treina há sete anos e meio e agora fez exame para grau azul com preto. Da minha parte, se houver isso, gostaria até que publicasse. Se tiver algo na mão, que mostre realmente isso. Da minha parte, tenho certeza que não houve. Estou com a consciência tranquila. Para mim, isso é total mentira. Inclusive, gostaria que me mostrasse uma gravação, alguma coisa. Eu jamais vendi graduação para alguém ou negociei.
O QUE DISSE ALEXANDRE CARNEIRO
A minha federação não tem nenhum certificado de grau vermelho com branco. O grau máximo é marrom com branco. Aqui, não acontece negociação de grau. Eu fui três anos seguidos para a Tailândia, lutei mundial, sou nomeado professor lá em técnicas, não botaria meu nome fora. Dou aula por esporte. Sou gerente de estacionamento, segurança de uma família há 14 anos. Arte marcial, para mim, é puro hobby.

sábado, 13 de dezembro de 2014

SUBMUNDO DAS LUTAS

ZERO HORA 13/12/2014 | 13h01

ZH investiga. Submundo das Lutas: em 78 segundos, inscrição de repórter é aceita em campeonato
Série de reportagens investigativas, que começa neste fim de semana, mostra o descontrole no MMA e muay thai em Porto Alegre e Região Metropolitana

por Carlos Rollsing e Mauricio Tonetto


Longe dos octógonos de luxo e dos combates profissionais, a falta de regras e fiscalização nos campeonatos amadores de muay thai e MMA (Mixed Martial Arts) dá sentido ao termo “vale tudo”. Por mais de três meses, ZH mergulhou nos subterrâneos das lutas e foi aceita em campeonatos sem comprovar qualificação. Nos torneios, viu atletas despreparados em lutas de desnível técnico, com equipamentos precários e inclusive ambulâncias proibidas. Nos bastidores, comprovou que a explosão de popularidade das artes marciais e a multiplicação de academias formou um ambiente perigoso para fãs do esporte.


Antiga denominação dos embates entre lutadores, “vale tudo” é uma expressão que pode ser aplicada para explicar o cenário underground dessas modalidades, impulsionadas pela explosão de popularidade das artes marciais e pela multiplicação de academias – parte delas sem respeitar os princípios milenares dessas lutas.



Por mais de três meses, ZH mergulhou nos subterrâneos do muay thai e do MMA da Região Metropolitana. A reportagem observou, documentou e participou de campeonatos, demonstrando que, em alguns dos chamados "torneios estímulos", basta pagar a taxa de inscrição para garantir minutos sobre o ringue ou o octógono.



Não é necessário comprovar experiência, ter autorização de professor ou ser aluno de algum centro de treinamento. Nos torneios assistidos pela reportagem, houve casos de atletas se enfrentando sem equipamentos de proteção em combates com desníveis técnicos grosseiros, e de ambulâncias proibidas, pelos organizadores, de encaminhar feridos ao hospital.



Sem nenhum treino, repórter vira "lutador"


Um minuto e 18 segundos foi o tempo necessário para se inscrever em um torneio amador de MMA. Sem nenhuma experiência no esporte, o repórter entrou em uma academia, aproximou-se do balcão e afirmou que queria lutar no "torneio estímulo", marcado para o último dia 22 de novembro. A uma atendente, respondeu a perguntas básicas, como nome, peso, altura e telefone. Ao final, o pagamento da taxa de inscrição: R$ 50 (veja imagem abaixo).






O repórter garantiu vaga para subir ao octógono mesmo sendo sedentário, não tendo treinamento algum, nem conhecimento das artes marciais ligadas ao MMA. Não foi feita nenhuma pergunta sobre professor responsável, nível técnico, academia ou origem. No dia seguinte ao da inscrição, um homem ligou se identificando como integrante da academia promotora do evento.


Questionou se um técnico acompanharia o repórter, que sem o conhecimento do interlocutor, passava-se por lutador. A resposta foi negativa. O nome do “atleta” foi incluído no card do evento, realizado na sede da academia, na zona norte de Porto Alegre, de forma avulsa. O lutador “Carlos Braga”, identificação utilizada na inscrição, não representava nenhuma academia e lutaria sem técnico.





– Os professores têm organizado competições para arrecadar fundos para si próprios, é um caça-níquel. Para uma pessoa lutar, teria de ter um técnico para orientar, uma equipe por trás. E se o atleta sofre uma lesão? Já temos aí casos conhecidos. Se uma pessoa enfrenta outra de nível técnico superior, pode até haver óbito. Quem é o responsável por isso? – diz Enildo Pacheco, líder da Federação Gaúcha de Muay Thai Tradicional.


Dias antes da competição, foi divulgada a lista das lutas, com maioria de combates no muay thai. Entre os seis embates de MMA, Carlos Braga foi escalado para disputar o “co-main event”, o que significa a segunda luta mais importante. O “torneio estímulo”, com lutas de muay thai e MMA, foi organizado por Márcio Miranda, proprietário da academia Elite Thai, em parceria com a Team Nogueira, controlada na capital gaúcha pelo empresário Rafael Chiavaro e franqueada pelos irmãos Rodrigo e Rogério Nogueira, também conhecidos como Minotauro e Minotouro, famosos no mundo do UFC.


No dia do evento, Carlos Braga se apresentou para a pesagem. Dois quilos acima do peso na primeira checagem, vestiu três peças de roupa sobrepostas e foi correr por 45 minutos pela Avenida Sertório, onde fica a academia. Cansado, colocou-se, por mais 10 minutos, a pular, por vontade própria, entre duas máquinas de assar frango que estavam em uma calçada, em frente a um restaurante, para queimar líquido com o calor.


Na segunda verificação, o “repórter-lutador” havia perdido três quilos, ficando um abaixo do peso máximo da categoria. Ele estava confirmado para a luta que deveria ocorrer à tarde. O atleta se manteve nas dependências da academia por horas. Instantes antes da seu combate, deixou o local, sem avisar, para não correr riscos.



Crédito: Ricardo Duarte/Agência RBS


Por R$ 50, pode-se lutar no octógono



O locutor anunciou o combate e chamou o seu adversário, Lindomar Silva, que subiu ao palco do enfrentamento. Embora tenha informado no ato da inscrição que tinha apenas três meses de treino, Carlos Braga lutaria com Lindomar, que ainda não estreou no octógono, mas já tem registro no Sherdog, um cadastro online internacional de atletas profissionais e semiprofissionais de MMA.


– O risco é de lesões irreversíveis, de as pessoas ficarem hospitalizadas para o resto da vida. Essas lutas entre pessoas mais e menos preparadas vão continuar acontecendo enquanto não tivermos profissionais que casem as lutas, o matchmaker, para promover enfrentamentos de atletas do mesmo nível – diz Gustavo Finck, presidente da Federação Gaúcha de Artes Marciais Mistas.



Lindomar Silva venceu por desistência (Mateus Bruxel/Agência RBS


– O aluno praticante de arte marcial é um lutador por natureza. Ele não tem medo. Se chamam um cara de 120 quilos e ele tem 80 quilos, ele vai querer lutar. O professor é quem tem de dar a proteção. Eu acredito que deixar um atleta amador lutar com alguém mais experiente é responsabilidade do professor. E lutar sem equipamento de proteção é responsabilidade da federação (organizadora do evento) – aponta Thiago “Minu” Meller, atleta do Bellator, segundo maior evento de MMA do mundo.


Episódio semelhante ocorreu em outro torneio estímulo no dia 4 de outubro, nas dependências do Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete). A competição, mais uma vez, foi organizada por Márcio Miranda. A reportagem de ZH inscreveu dois atletas inexistentes no torneio. Os nomes das academias também eram falsos (veja imagem abaixo).



Luis Sergio e Max Massa eram os atletas falsos divulgados no card


Bastou fazer depósito bancário de R$ 50 por lutador na conta de Miranda e mandar os dados dos atletas por e-mail. O direito de entrar no ringue para disputar lutas de MMA amador estava garantido, sem nenhuma restrição ou pergunta sobre as condições físicas, responsáveis técnicos, treinamento e experiência. Pagou, lutou.


Falta de regras incentiva desvios


Com a falta de regras claras e a inexistência de leis que regulamentem no Brasil a prática das artes marciais, a formação também está em risco. Criadas em profusão, algumas federações fornecem, sem muito esforço dos pretendentes, certificados que permitem a qualquer pessoa, mesmo quem nunca tenha treinado, tornar-se professor.


Nesta realidade sem regras, “mestres” inescrupulosos mancham o nome de práticas esportivas milenares, deixando de lado as antigas filosofias de disciplina e respeito seguidas pela maioria dos praticantes e academias para dar margem a um mundo focado em lutas, promoções de faixa e eventos que possam significar dividendos.


Saiba quais são os equipamentos de proteção usados no muay thai amador:​
A conta é paga com a saúde de praticantes ludibriados pelo sonho de conquistar a fama por meio de combate ou pelo desejo de sentir-se forte ao nocautear um oponente. Símbolo disso é a jovem Maria Luiza Ramos, há três anos em estado vegetativo depois de lutar, em um campeonato de muay thai em Porto Alegre, sem equipamentos de proteção.


Enfrentando uma atleta mais experiente, levou diversos golpes na cabeça, sofreu um derrame e, após a luta, a equipe de socorro da ambulância foi orientada a não levá-la ao hospital. O vale tudo deixou Maria Luiza em cima de uma cama de forma irreversível. E continua espalhando sequelas impunemente.


Maria Luiza Ramos vive em estado vegetativo (Mateus Bruxel/Agência RBS)

O que dizem os envolvidos citados na reportagem

Rafael Chiavaro, proprietário da Team Nogueira Porto Alegre
Foi o primeiro circuito que eu fiz. Estou aprendendo bastante ainda. A atendente fez pela orientação: inscreve o atleta e depois ele faz o checklist. Ele garantiu a vaga dele, só que não passou no checklist. A orientação dada foi: inscreve o cara e depois faz o checklist. No meu ver, não tem nada de irregular. Ele não ia pisar no ringue sem um corner e um mestre. Pode ter certeza que esse atleta (no caso, o repórter) não ia lutar se não passasse pelo checklist. Vocês estão tentando procurar cabelo em ovo. Eu não gastei R$ 1 milhão para machucar atleta, e sim para promover o esporte. A exigência é muito grande para um ramo que não dá lucro nenhum.

Márcio Miranda, organizador dos campeonatos citados por ZH
Como é um evento amador, a gente faz um bastantão e seleciona tudo e na hora faz uma triagem e um checklist antes de subir no octógono. Experiência de treino não quer dizer nada. Ele (o repórter de ZH) não ia lutar, se estivesse sozinho não ia lutar.