terça-feira, 26 de agosto de 2014

LUTAS CLANDESTINAS GERAM ALARME


ZERO HORA 26 de agosto de 2014 | N° 17903


LUTA VIRA CASO DE POLÍCIA




Competições clandestinas e academias de luta que operam à margem de federações preocupam autoridades e esportistas. Segundo o presidente da Federação Gaúcha de Muay Thai Tradicional, Enildo Pacheco, a situação é grave. Ele atribui o problema à falta de uma legislação que conceda poderes de fiscalização às entidades federativas.

Pacheco afirma que há muitos circuitos de luta realizados sem respaldo de alguma entidade. A principal preocupação dele é com a quantidade de crianças e adolescentes que ingressam no esporte, sem consciência dos riscos.

– Isso virou um negócio lucrativo. Está cheio de academia que não é filiada a ninguém. Chega um professor, coloca um calção e vai dar aula. Temos de ensinar arte marcial, e eles estão apenas ensinando luta – critica.

No caso de Luiza, ele diz que houve um acúmulo de irregularidades, que acabaram por culminar no desfecho trágico:

– Eles colocaram a menina para lutar com pouco tempo de treino, sem proteção e contra alguém de nível muito mais elevado. Todo atleta quer combater. Cabe ao instrutor saber se ele pode.

A federação presidida por Pacheco é a única a ter feito um acordo com o MP para informar sobre as competições que promove. Conforme o promotor Júlio Almeida, responsável por fiscalizar a prática de esportes violentos, poucas são as denúncias que chegam até ele:

– Sabemos que existem muitas academias de fundo de quintal, mas parece que as pessoas que praticam esses esportes e participam dos campeonatos são coniventes, esquecendo dos riscos.


O COMBATE QUE MATOU UM SONHO


ZERO HORA 26 de agosto de 2014 | N° 17903


KAMILA ALMEIDA

LUTA VIRA CASO DE POLÍCIA

JOVEM ACABOU EM estado vegetativo ao enfrentar faixa preta, em caso que levou ao indiciamento de oito pessoas


Uma luta realizada fora dos padrões mínimos de segurança mantém há três anos uma jovem de Canoas em estado vegetativo, lançando um alerta sobre os riscos de praticar artes marciais sem precauções. Maria Luiza Ramos, então com 20 anos, treinava havia apenas três meses quando participou de uma competição amadora de muay thai (boxe tailandês) realizada em outubro de 2011 em Porto Alegre.

Repetidos golpes na cabeça desprotegida de capacete, desferidos por uma oponente faixa preta em taekwondo, deixaram a menina em uma cama, inconsciente, até hoje. Há 10 dias, a Polícia Civil indiciou oito pessoas pelo caso.

Luiza entrou no esporte por diversão e quis desafiar-se. Conhecia a experiência de 10 anos da adversária, mas fiou-se no boato de que ela estaria sem treinar. Sua mãe, Vera Lúcia Mello Ramos, 57 anos, lembra do último diálogo que teve com Luiza, depois de preparar-lhe um prato reforçado de macarrão. O assunto era a negativa da mãe em ir à Sociedade Hebraica para ver o combate.

– Não quero ver você se machucar – disse Vera.

– Estou confiante, mãe. Não vou me machucar – retrucou a jovem.

Luiza chegou à Hebraica às 15h, mas a luta ocorreu às 21h. Ela provou o capacete obrigatório em competições amadoras, mas achou folgado. As lutadoras aceitaram enfrentar-se sem a proteção. O juiz autorizou. O combate durou três rounds de cinco minutos. Luiza teria pedido para parar já no primeiro. Testemunhas dizem que ela terminou a luta zonza, sem ouvir o resultado, com o nariz ensanguentado. Em seguida, desmaiou. Foi levada por amigos, no banco traseiro do carro, até o Hospital de Pronto Socorro, onde chegou com falta de oxigenação no cérebro.

Depois de seis meses internada (incluindo um mês em coma), voltou para casa. A equipe médica sentenciou que o estado vegetativo era para sempre, que Luiza não teria mais consciência.

Vera quebrou paredes para emendar os quartos das duas, conseguiu emprestada uma cama hospitalar e improvisou uma enfermaria. Para que haja estímulos, deixa um repertório de música clássica tocando de leve, alternado com as preferências de Luiza: rock e ritmos tradicionalistas. Na TV, imagens de natureza e animais para acalmá-la. Poucos são os sinais de vida na jovem de 1m72cm, que em dois meses faz 23 anos. Vera tem certeza de que a menina entende tudo o que acontece ao redor.

Luiza trabalhava na área de contabilidade e sonhava cursar a faculdade de Dança. No dia seguinte à luta, faria o exame para tirar a carteira de motorista.

– Ela é danada. Botava o coração no que fazia. Queria competir, ver em que nível estava – diz a mãe .

Para suportar a saudade de quem enxerga todos os dias, mas com quem não pode interagir, Vera montou ao lado da própria cama um mural com as fotos mais bonitas da filha. Fita-as de relance.

– Não quero mexer nesse passado, lembrar como era ela. Quero pensar só no amanhã, no que podemos fazer para que ela fique melhor – emociona-se.

Vera vive de fé. Apesar do prognóstico dado pelos médicos, agarra-se a sinais, como mínimos movimentos com a boca e bocejos. Em um canto do roupeiro, guarda a foto preferida de Luiza. Com o cabelo trançado, de costas, ela imita uma das poses da protagonista do filme Menina de Ouro (2004), uma lutadora de boxe interpretada por Hilary Swank. A personagem sofre uma lesão que paralisa seus movimentos e pede ao treinador que lhe aplique a eutanásia. Vera lembra de uma das vezes em que entrou na UTI pisando forte, com a imagem do filme na cabeça:

– Cheguei para ela e disse: “Tu não és a Menina de Ouro, tu vais sair desta cama”.

Luiza abriu uma frestinha do olho e deu pela primeira vez à Vera uma esperança.


Inquérito aponta tentativa de homicídio e omissão de socorro


Com base em mais de 40 relatos, imagens de vídeos e laudos médicos, a delegada Vandi Lemos Tatsch, da 8ª Delegacia da Polícia Civil da Capital, indiciou criminalmente oito pessoas por envolvimento no caso de Maria Luiza. Três dos envolvidos foram listados por tentativa de homicídio. O inquérito policial foi remetido à Justiça no dia 15 de agosto.

Entre os indiciados estão a organização do evento, a oponente de Maria Luiza, o instrutor da vítima e o árbitro da luta, além da equipe de socorro que estava no clube, mas teria se negado a levá-la ao hospital, de acordo com a investigação. A polícia não revelou os nomes dos envolvidos.

O inquérito policial soma mais de 250 páginas, incluindo depoimentos de testemunhas que estavam no local da competição. Conclui que houve omissão de socorro por parte da equipe médica presente no local e responsabiliza diversos envolvidos na competição sediada na Sociedade Hebraica.

O clube, que não está entre os indiciados, informou apenas locar espaços para eventos desse tipo e não ter responsabilidade sobre o que se passou no campeonato. O inquérito ainda aguarda parecer do Ministério Público (MP). A promotora Lúcia Helena Callegari, da 3ª Promotoria do Júri, recebeu o documento e deve se manifestar ao longo desta semana.

Em paralelo ao processo criminal, desde junho deste ano corre na Justiça de Canoas um processo civil indenizatório, movido pela família da vítima, que pede aos indiciados ressarcimento por danos morais e materiais.

No processo, é solicitado o custeio de um serviço de home care – equipe médica capacitada para tratar de Luiza em casa.

Uma decisão favorável ajudaria Vera, que cuida sozinha da jovem e sustenta o lar com o salário de vendedora autônoma de semijoias e lingerie, além da aposentadoria por invalidez da filha e das doações do centro espírita que frequenta.